domingo, 18 de julho de 2010

MAPEAMENTO CULTURAL

O Brasil teve ao longo da constituição de sua rede de cidades estratégias de ocupação que marcam alguns ciclos. Embora se tenham alterado drasticamente as lógicas de ocupação territorial, muitas de nossas cidades ainda “guardam” traços de seus riscos iniciais.
Nossa constituição étnica, por sua vez, também espelha e deixa marcas na vida social e cultural de muitas regiões e cidades.

As cidades fundadas no século XVI, e mesmo no XVII, foram basicamente de ocupação litorânea e voltadas à defesa do território colonial português. Assentadas em locais altos, muralhas contendo malhas internas irregulares e com pouca vida social. Foi assim no Rio de Janeiro, em Niterói, em Olinda, em Salvador, entre muitas outras. Com a ascensão comercial do ciclo açucareiro as principais cidades portuárias prosperam, dinamizaram suas estruturas sociais e cresceram em direção aos portos.
Ainda no século XVII, mas principalmente no século seguinte iniciou-se a ocupação interior em busca do ouro. São Paulo foi simples ponto de passagem, vindo a florescer algumas cidades mineiras e goianas. No século XIX vieram explosões econômicas importantes. A borracha fez enriquecer certas regiões do norte, e o ciclo do café definitivamente fez explodir uma larga rede de cidades, principalmente nas regiões fluminense e paulista. Trouxe com ele a modernidade das redes ferroviárias e dos serviços urbanos de eletrificação e saneamento.
Foi, no entanto, ao longo do século XX que a modernização realmente impactou nossas realidades urbanas com grandes intervenções de renovação dos antigos tecidos coloniais, inicialmente no Rio e em São Paulo, e com o planejamento de cidades modernas: Goiânia, Brasília e Palmas expressam três desses momentos.

Nossa composição étnica por sua vez expressa, também, momentos cíclicos. Aos índios, portugueses e africanos dos primeiros séculos somaram-se importantes massas imigrantes, sobretudo européias, que cruzaram os mares em busca de oportunidades de inclusão que a industrialização vigente no primeiro mundo não lhes propiciou.

Que marcas territoriais e étnicas ainda se apresentam em nossas cidades? De que maneira nossos traços culturais regionais se sobrepõem à homogeneização percebida nos tempos atuais? Marcados por forte composição social excluída e sobrepujada, como estamos fortalecendo a inclusão?

Os dados censitários são bem pouco animadores. Cientistas sociais falam de abismo social. Especialistas estrangeiros adjetivaram nosso nome –brasilianização- como expressão de pobreza. Ainda se constata bolsões de trabalho escravo no Brasil, isso sem falar dos altos índices de violência urbana e de prostituição infantil.

Que papel a Cultura pode ter na reversão desta realidade? Como fazer belos conceitos saírem do papel (empoderamento, protagonismo social, responsabilidade social, inclusão social, sustentabilidade, capacitação profissional e geração de renda e emprego através da cultura)?

Como estabelecer e fortalecer redes sociais? Como estimular e incorporar a governança e o capital social como estratégias para nossas ações? Como promover a ética como a estética de vida dos indivíduos?

. Identidade brasileira: realidade ou fantasia?

OBS.:Fragmento de minha tese de Doutorado em História Social, intitulada A FANTASIA DA MODERNIDADE; a falácia de um modelo único. Niterói: UFF-ICHF-Programa de Pós-Graduação em História, 1997.


Sérgio Buarque de Holanda esboça, em Raízes do Brasil, o elemento pregnante no brasileiro: a cordialidade. Darcy Ribeiro caracteriza-nos como povo-novo. Para este autor, a marca que nos identifica é o amalgamento de diversas contribuições étnicas que se fundem em algo diferente de seus elementos constitutivos. Temos, para ele, a marca do novo. Roberto Da Matta e Richard Morse evidenciam o favor como nossa característica potencial, enquanto Roberto Schwarz vê, no mesmo favor, nossa destruição.
O que podemos perceber nessas tentativas de elucidar a identidade do brasileiro é que esta não se coloca evidente. Se estamos continuamente tentando desvendar a nossa identidade é porque há um indício de não a termos clara.
Seríamos um povo “macunaíma” , sem caráter (no sentido de sem característica, sem identidade)?
Ao que parece, mais do que uma crise de identidade, um esfacelamento de algo já assentado, nosso caminho evidencia um processo de identidade ainda em construção.
Um outro enfoque é o explorado por Gisálio Cerqueira Filho, que busca fundamento tanto na História quanto na Psicanálise. Para o autor, a construção de nossa subjetividade assenta-se na falta de limite, na "ignorância simbólica" da lei. O que, por paradoxo, não nos levaria à construção efetiva da identidade.
Ora, vale a pena retomar o assunto desde o início, e explorar, ponto por ponto, o que nos dizem os autores citados.
A idéia de "homem cordial" e de relações sociais centradas no "favor", na camaradagem, tendem a misturar-se. Se observarmos mais atentamente, no entanto, veremos suas diferentes nuances. Conforme S. B. de Holanda, em "sociedades de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos".
Jorge Forbes, em artigo que trata dessa mesma obra, evidencia que aquele autor "não faz apologia do 'homem cordial', não o coloca no melhor dos mundos. Ele previne que 'a vida em sociedade - para o brasileiro - é de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente de viver consigo mesmo'." Forbes prossegue em sua análise, tirando partido de algumas idéias de J. Lacan sobre o altruísta: " 'o que ele [o altruísta] respeita, o que ele não quer tocar, na imagem do outro, é a sua própria imagem'."
O que extrair desses autores? A princípio, a desmistificação da "cordialidade" como elemento positivo, uma vez que nem sempre o que se nos apresenta aponta para a "cooperação autêntica". Um segundo ponto, auxiliado pela psicanálise, evidencia na nossa cordialidade não um efetivo aspecto de intimidade, de proximidade com o Outro, e sim o aspecto de afastamento, de negação da própria imagem. Ora, se tomarmos em consideração que a subjetividade (elemento fundamental de construção de identidade) pressupõe justamente aproximarmo-nos da nossa imagem, pode-se dizer que acreditar que a cordialidade é fundante de nossa identidade é uma crença falaciosa.
Darcy Ribeiro defende a tese de que o brasileiro tem estruturada a sua identidade étnico-cultural, a despeito de nossa heterogênea formação social. Para o autor, o componente negro ou mulato é o mais brasileiramente característico: "não sendo índio nativo nem branco reinol, só podia encontrar sua identidade como brasileiro. Vale dizer, como um povo novo, feito de gentes vindas de toda parte". Darcy Ribeiro tenta defender, mesmo tomando como base a nossa trajetória e origem históricas desde os tempos pré-descobrimento, a identidade brasileira como composta justamente pela pregnância do `novo. A busca do novo como elemento marcante de nossas tradições. Ora, uma vez mais parece-me que os caminhos mais afastam-se do que se aproximam. A apologia do "novo" é uma negação das tradições e da história.
Contardo Calligaris procura "entender como se inscreveu na história do país uma decepção sem remédio" , qual seja: a de não conseguirmos sentir-nos cidadãos identificados com o Brasil. Ao menos identificados na plenitude do termo: filhos livres e cônscios dos limites necessários à cidadania. Segundo a tese do autor, "sermos" do país e não "estarmos" nele.
Calligaris elucida os fios que tramam o imaginário brasileiro que se revela num discurso onde aparecem duas falas impressas em nossas mentes e corações a partir do descobrimento: a do colono e a do colonizador.
Como colonos (filhos), coube-nos o fantasma de transformarmo-nos em escravos (brancos ou pretos); a autoridade que poderia reconhecer nossa condição de explorados é, na verdade, a sombra do próprio colonizador que nos explora. Como colonizadores (pais) caberia-nos uma função paterna "de brincadeira" que reproduz o estigma anterior. Num "cinismo estrutural, o vai e vem impera: colono, me engajo, me filiar é mesmo o que quero, mas desconfio pois eu mesmo, colonizador, só pediria que os outros se filiem a mim para gozar dos seus corpos" (p. 150).
O autor considera que essa ambigüidade inscrita em nossa subjetividade emperra nossa tentativa de fundar e consolidar a identidade.
Sendo uma "fundação exitosa", ela transmitiria-se no tempo. Instituindo uma ordem simbólica constrói-se uma base de sustentação que pode ser real, que funde, estruture, sustente mesmo. "Quando os laços são simbólicos, não é necessário esperar dos atos que o sejam, eles podem se contentar em ser reais, pois os laços já garantem ao sujeito o reconhecimento da sua filiação e da sua cidadania" (p. 111).
Se for uma "fundação fracassada", ela não se constituirá enquanto uma filiação, ensejando assim novas fundações que se renovam na tentativa de um ato fundador a mais. O que acarreta um enfraquecimento (senão uma impossibilidade) de sua condição de sustentáculo de um significante nacional. "A necessidade de se fundar e refundar a cada dia encurta a memória" (p. 106). Idéias essas que ajudam a desmistificar a fundamentação de Darcy Ribeiro de identidade calcada no novo.
Calligaris, no entanto, não aposta num poço sem fundo: "o colono pode testemunhar uma paixão nacional nada brega porque ainda está fundando sua nação, ou mesmo o significante nacional da nação que ele espera; e já sabe que isso ele não pode esperar do colonizador" (p. 148). Na própria brecha de formação do signo encontra-se o caminho.
Gisálio Cerqueira Filho aponta-nos que o projeto de construção da identidade brasileira está diretamente relacionado ao gozo que a exploração pode proporcionar. O autor propõe-nos "forjar um pensamento capaz de articular a representação da lei ( a ignorância simbólica da lei 'versus' a questão da cidadania) jurídica com a representação da lei no sentido psicanalítico (dupla função paterna repressiva/transgressiva)."
Encampando as idéias lacanianas, o autor alerta-nos de que a descrença e/ou desrespeito às leis acontece principalmente na dimensão simbólica, na representação da realidade, na esfera do desejo. Uma vez estando relacionada a um gozo sem limites, inscrito de forma geral na subjetividade dos brasileiros, aponta para uma identidade construída de modo deformado. Melhor seria: se mal construída a subjetividade, pouco podemos esperar em relação à construção de uma identidade plena.
Averigüemos outros pontos de vista.
Antonio Cândido tece como "dialética da malandragem", o confronto dialético da ordem e da desordem.
Na sociedade brasileira essas questões são mesmo dialéticas.
Herói: homem extraordinário pelo seu valor.
Anti-Herói: por formação morfológica, é o contrário daquele.
Malandro: esperto, matreiro, que não trabalha, preguiçoso.
São alguns sinônimos que o Dicionário Aurélio apresenta-nos.
Completo com as definições apresentadas por Josué Montello (JB, "Salvo melhor juízo"): "enquanto o herói se bate pelos valores da sociedade em que vive, e a esta naturalmente se ajusta, o anti-herói se defende desses valores, com os quais está em permanente conflito".
Quais, então, os valores da sociedade brasileira? Quem são nossos heróis e nossos anti-heróis? Mário de Andrade apontou o malandro, signo do anti-herói, como o herói. Sem caráter. Pode-se ler "o herói sem caráter" num duplo sentido:
a) sem escrúpulos, o que vige na lei do "levar vantagem em tudo". Neste sentido nosso macunaíma seria um anti-herói, malandro. E neste sentido, herói e anti-herói identificam-se na busca do gozo máximo, na falta de limite. No contexto brasileiro esse ponto aproxima-se tanto do herói, quanto do anti-herói na sua significação dicionarizada.
b) um segundo sentido que "sem caráter" pressupõe é o da falta de individualidade, falta de subjetividade, em suma, sem identidade. Também esse sentido é pertinente à sociedade brasileira. Seria forte dizer que uma sociedade não tem identidade própria, mas posso dizer que nossa identidade é dialética. O que ora é ordem, ora é desordem. Tanto a lei funda-se no arbítrio quanto o arbítrio vira lei. Tanto o herói é malandro quanto o malandro é herói.
Seguindo a tese lacaniana poderíamos mesmo dizer que a onipotência do herói, a falta de limites, aponta a ausência da interdição gerada pela figura do pai, e que sem ela não alcançamos a dimensão simbólica necessária à construção da subjetividade. Somos de fato heróis sem caráter. Malandros sem identidade própria.
No Brasil, as pessoas "nunca tiveram a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da liberdade senão como capricho. As formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência" É esta a tese do autor da dialética da malandragem, dialética da ordem e da desordem.
"Não querendo constituir um grupo homogêneo e, em conseqüência, não precisando defendê-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maior largueza à penetração dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência".

Nossa fraca identidade potencializa a formação de uma identidade não muito rigorosa.
Podemos ler estas idéias de diversas formas. A saída positiva para o dilema brasileiro encontra-se, justamente, na ambigüidade da sua situação negativa. Na pregnância dialética dos contrários.
É como a trajetória de Macunaíma. Enquanto nosso herói sem caráter, que é malandro mas que é herói, coloca-se acima do bem e do mal e vai tirando proveito máximo de tudo, o narrador vai revelando as tradições do nativo brasileiro na tentativa de tecer nosso caráter. Grande Mário de Andrade.