quarta-feira, 3 de junho de 2009

GPDU "do bem"

Participei da banca de mestrado de João Batista Porto Junior (UFF-Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo) no dia 22.05.2009, cujo trabalho “Refazendo o Caminho: dimensões do projeto urbano de Niemeyer para Niterói, RJ” nos faz refletir sobre os descaminhos da sociedade contemporânea. A dissertação é oportuna e necessária, e realça algumas dimensões dos GPDUs: Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano.
Ao se flagrar certos GPDUs, algumas questões iniciais podem ser lançadas: que são Grandes Projetos, não restam dúvidas; se são de Desenvolvimento, aí podemos nos questionar. Certos termos precisam ser sempre questionados. Desenvolvimento de que? A partir de que modelo? Com qual finalidade? Planejamento estratégico para quem? Com quem e por quem? Alguns desses eixos é que me moveram a postar estes comentários.
Porto Junior recorre às discussões da sociedade do espetáculo de Guy Debord, estabelecendo correlações entre certas materializações da sociedade contemporânea. É neste campo que quero avançar, pois de certa forma tanto a Cultura quanto o Urbanismo são travestidos em seus sentidos essenciais e transformados em merchandising em uma sociedade que parece centrar-se somente no consumo.
A meu ver, os GPDUs normalmente são frutos dessa postura consumista. Mas serão todos eles produtores de espaços efêmeros e simplesmente espetaculares? Existe GPDU “do bem”?
A lógica de grandes cenários urbanos toma conta do planejamento atual. E valem enquanto cenário, valem por sua carga sígnica, sua imagem... Faltam em muitos dos projetos considerarem os atores que darão vida à cena; e estou falando de protagonistas e não de meros figurantes. Senão, vira só cenário. Torna-se não-lugar, na acepção do antropólogo Marc Augé. Local de passagem, sem enraizamento, sem vivência.
Pensar na produção dessa tipologia de espaços urbanos é como pensar na espécie de produção de arte e cultura que ainda insiste em ser apenas voltada ao “consumo” imediato. Do mesmo modo que necessitamos de ações em cultura que almejem que os indivíduos sejam fruidores, dêem efetivo uso, se apropriem... Ser, ao invés de só parecer. Enxergar, ao invés de só olhar. Vivenciar, ao invés de só estar. Fugir do meramente eventual e efêmero.
Ao que tudo indica, os GPDUs têm a mesma lógica de uma indústria cultural voltada apenas ao consumo de massa. Ambos querem só o “espetáculo”. Ambos só querem o evento que consolide a imagem, a marca. Ambos se pautam por apropriações meramente mercadológicas. Não quero ser pessimista. Quero defender uma lógica contrária.
Quero que Arte e Manifestações Culturais sejam o que são: possibilidades múltiplas de exercício de nossa possibilidade de comoção, de encantamento. Quero que os Lugares Urbanos sejam espaços de sociabilidade, de interação, de prática e vivência. E não é mera questão panfletária. É como nos posicionamos no mundo. Trata-se aqui da defesa de que não façamos de nossas vidas meras representações (individuais), meras vitrines de exposição (na qual o sujeito se torna um produto, objeto), meras imagens (virtuais ou reais) ... miragens...
Pelos trabalhos acadêmicos (o citado, e outros), o Caminho Niemeyer é um GPDU. Um grande empreendimento urbano, frutos de fortes parcerias público-privado, um exemplo do empresariamento urbano, uma marca de grife na lógica do city-marketing, um não-lugar na concepção de Augé, um espetáculo consumível na concepção de Debord, um local segregado na minha concepção; em suma: uma catástrofe. Preferiria um lugar-comum, um simples lugar. Integrado ao restante da cidade. Se almejar qualidade (?) estética é produzir esse tipo de morfologia, prefiro a simplicidade das formas urbanas vernáculas...
Citei na defesa de dissertação apresentada no início destas palavras o exemplo português do Parque das Nações (Lisboa). Um GPDU “do bem”, assim me parece.
Como forma de demonstrar sua capacidade de implantação de grandes intervenções urbanas, Portugal foi sede da Exposição Universal de 1998. Para tanto, planejou a recuperação/utilização de antiga área portuária às margens do Tejo. Buscou grandes arquitetos, sim. Mas não se valeu apenas destes. Planejou espaços com forte imagem e carga sígnica, mas os dedicou aos “estrangeiros” e aos “locais”. E quis que o lugar guardasse sua força e sua atratibilidade para além do grande evento, atraindo turistas e população local. Planejou segundo a lógica da vivência e não do “espetáculo”.

Este texto poderia ter sido estruturado a partir de diversos focos. Privilegiei as questões urbanas e culturais. Em relação às reflexões do GPDU português selecionei pontos específicos que pudessem tecer elos entre passado e presente, pois Lisboa continua sendo a tradicional cidade dos azulejos, do bacalhau e do fado. Mas é, também, a contemporânea cidade da música tecno e dos centros comerciais.
A trajetória de Lisboa foi sempre marcada pela sua relação direta com o rio Tejo. Porém, no século XIX o desenvolvimento industrial e comercial determinou o crescimento da cidade para o interior, distanciando-se do Tejo. No entanto, próximo ao fim do século XX a cidade torna a voltar-se para as águas. Nos anos 90 foram lançadas as bases tanto para a reabilitação dos bairros históricos, quanto para a recuperação e requalificação de toda a zona ribeirinha, agora local de lazer e convívio.
Como aparece num dos sites que divulgam a cidade:
“Lisboa não se vê, sente-se: olhando os navios que chegam e partem do rio; calcorreando vales e colinas através das ruas estreitas e dos empedrados artísticos; observando as gentes que passam; no cheiro da sardinha assada que percorre os bairros populares durante as festas da cidade e, no fado que canta, à noite, a saudade.”
“Com efeito, a requalificação urbana, enquanto processo de intervenção social e territorial, pressupões um conjunto de ações integradas numa determinada lógica de desenvolvimento urbano, agindo, assim, ao nível da qualidade e das condições de vida dos diversos grupos sociais –em especial, os que se encontram mais marginalizados da vida social e urbana- numa postura de democraticidade social e de generalizada apropriação individual e coletiva dos espaços em causa. Deste modo, a requalificação urbana constitui-se como um processo social e político de intervenção no território, que visa essencialmente (re)criar qualidade de vida urbana, através de uma maior eqüidade nas formas de produção (urbana), de um acentuado equilíbrio no uso e ocupação dos espaços e na própria capacidade criativa e de renovação dos agentes envolvidos nesses processos.” (FERREIRA, Vitor Matias; INDOVINA, Francesco. (org.). A cidade da Expo’98. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1999.)
Vê-se pelo mundo afora a sempre mesma questão: a degradação e esgotamento das áreas portuárias, tornadas obsoletas com a perda da função original. Investidas de grandes áreas construídas e de grandes vazios, as frentes de água –nestes casos- tornam-se locais de pobreza e de pouca vitalidade. Esta estagnação fez, no caso de Lisboa, com que o crescimento da cidade desse as costas para o Tejo.
Buscando solucionar esse fenômeno, a gestão do território lisboeta encontrou na produção do espaço para a feira internacional a oportunidade definitiva. A zona oriental da cidade que abrigara importante função portuária tornara-se perigosa e de baixa qualidade ambiental. Indústrias petrolíferas e químicas desativadas, instalações fabris em ruínas, estoque habitacional empobrecido e acessibilidade deficiente era o quadro que caracteriza a área que recebeu o atualmente denominado Parque das Nações. Buscou-se realinhavar as antigas relações diretas entre a área do porto e as áreas de seu entorno, fazendo com que Lisboa se voltasse orgulhosamente para o Tejo novamente.
Os impactos, tanto da intervenção urbana quanto da cultural e turística, podem ser percebidos por notícias da mídia:
“A exposição de Lisboa, além de seu tema oficial (Os Oceanos, um Patrimônio para a Futuro), tem outro objetivo. Um dos primos pobres da União Européia, Portugal pretende aproveitar a Expo’98 para divulgar a modernização e os avanços recentes do país.” [...]
Há outra novidade em relação à expo’98. Ao contrário da maioria das feiras mundiais, totalmente desmontadas após sua realização, a infra-estrutura da exposição de Lisboa será aproveitada após setembro. O próprio local do evento –60 hectares às margens do Tejo- foi totalmente reurbanizado durante a construção dos seis pavilhões e das demais instalações da feira. Antes tratava-se de uma região degradada e abandonada cuja poluição contaminava até o Tejo. Agora, com o rio recuperado, será integrada a um novo pólo residencial chamado Expo Urbe, com 7 mil apartamentos, escritórios e lojas.” (Caloca Fernandes In: http://epoca.globo.com, 23/maio/1998)

“A belíssima estrutura de bancos, praças e jardins montada para a expo 98 também será conservada. Os turistas podem continuar subindo na torre Vasco da Gama para apreciar a paisagem, andando de teleférico de um lado a outro do parque [...]. Também não vão faltar vitrines e comprinhas. A construção do Centro Comercial Vasco da gama, com inauguração marcada para a próxima primavera européia, será outro marco na vida do Parque das Nações. O shopping terá hipermercado, restaurantes, cinema e lojas. [...] A praça de espetáculos que recebeu alguns dos concorridos shows de MPB durante a feira, a Praça Sony, vai abrigar os mais importantes encontros musicais da capital portuguesa nos próximos tempos.” (Célia Curto In: O Estado de S. Paulo, 27/out/1998)

“A explosão de prédios modernos borbulha ainda com mais intensidade no Parque das Nações, concebido para a Expo-98, que tinha como tema Os oceanos, um patrimônio para o futuro. [...] Ao longo dos 12 quilômetros do Corredor Cultural, às margens do Tejo, atracam barcos que funcionam como bares. O espaço, arejado, é efervescente com cafés, livrarias e lojas.” (Jornal do Brasil, 09fev/2003)

A lógica contemporânea que norteia as intervenções urbanas aponta para o aproveitamento das áreas centrais promovendo sua restauração em oposição à ampliação dos limites periféricos das cidades.
Diversidade gera diversidade. Intervenção com manutenção do tecido social existente e ampliação de setores e camadas sociais diferenciadas. Mesclar edificações novas com edificações antigas ou históricas. Promover intervenções de pequeno porte e incluir a melhoria dos espaços coletivos. As quatro idéias apresentadas apontam para melhores possibilidades e resultados ao se intervir nos centros. Ou mesmo em toda e qualquer área de uma cidade.
Apresenta-se bem oportuno o conceito das intervenções portuguesas, pois apostam na diversidade funcional e social como garantias da requalificação. O mesmo pode ser flagrado pelo projeto de intervenções na área portuária. Potencializado financeiramente pela Exposição Internacional de 1988, o agora denominado Parque das Nações traz um conceito de que reabiliar pressupõe processos de ampla ressonância que ativem os mais diversificados setores/agentes sociais. Apostou-se em qualificar a área tanto para os interesses turísticos e do grande capital, quanto para a população da cidade em toda a sua diversidade.

Eu quis postar estes comentários pois entendo que pensar na Cultura e em seu papel no desenvolvimento de um país, região, comunidade, ou das pessoas em geral transformou-se radicalmente nas últimas décadas colocando desafios inéditos e imensos a todos aqueles que, no setor público ou no setor privado, procuram novos caminhos, soluções e funções, tanto para os tradicionais, como para os novos territórios da cultura. Se o empreendimento português atingiu essa meta e se conformou como um “lugar”, então temos aí um GPDU de sucesso; “do bem”.

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