quinta-feira, 14 de maio de 2009

Produção do espaço urbano - algumas questões.

ESPACIALIDADE E TURISMO


“O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas:
a cidade diz tudo o que você deve pensar,
faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita
estar visitando Tâmara, não faz nada além de registrar
os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes.”

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 18.


As reflexões aqui desenvolvidas buscam explorar posicionamentos norteadores de intervenções urbanas que tomem como base o resgate do espaço enquanto local de convivência, entendendo que “revitalizar” pressupõe reviver, garantir a plena “vida” do lugar: ou seja, sua plena possibilidade de usos compartilhados pelos mais diversos agentes sociais.
Parte-se do pressuposto que o espaço urbano pleno é aquele que possibilita uma apropriação múltipla que o consolide enquanto “lugar”, em direta oposição ao “não-lugar”. Certeau aponta que espaço é lugar praticado, pois ligado às pessoas. E Augé cunha a expressão não-lugar, designando “duas realidades complementares porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantém com esses espaços”. Espaços marcados pela efemeridade, por apropriações rarefeitas e momentâneas. O autor considera que a dimensão do não-lugar está contida em qualquer lugar, fato que leva a que o próprio residente possa se sentir um estrangeiro em sua própria terra, no seu próprio território.
Aponte-se, também, as reflexões de Yázigi na direção de se flagrar a “alma do lugar”. O lugar incorpora o cotidiano, caracteriza a parte e o reconhecimento de que esta está em certa autonomia em relação ao todo, ao conjunto mais amplo. O lugar existe a partir das relações de vários elementos, dos campos da biosfera, da cultura material e imaterial, da memória, das animações e das cognições. Em suma, tem sua poética própria, sua banalidade, efemeridade, singularidade e sotaque. Está articulado ao sentimento de pertencimento.
Entender a produção social do espaço como produção de lugar é, então, entender essa produção a partir de sua múltipla e diversificada carga semântica: qualquer espacialidade é rica de significados, assim como é rica e diferenciada a sua apropriação pelos diferentes atores sociais. Hoje, somos levados cada vez mais a perceber as cidades por signos de significados reduzidos. A Cidade é tomada por uma ou duas imagens (sem significado e sem conteúdo), reduzida drasticamente em sua possibilidade/vocação e em sua historicidade. Os viventes de uma cidade não são mais os cidadãos políticos que geraram a polis do mundo grego, ou a urbs romana. Nem ao menos um conteúdo coletivo como apresentam as cidadelas medievais é mais encontrado na cidade pós-industrial. Baudelaire registrava o flanêur da cidade do século XIX, porém, ao que tudo indica, os usuários das cidades deste início de milênio ainda guardam um sentido assentado no século passado que transforma o cidadão num simples voyeur.
Será esta indiferença a única possibilidade que poderemos esperar atualmente das cidades? Se for, então não cabe refletir a revitalização, pois o que deu vida às cidades foi o “estar junto”. Busco, ao contrário, abordar a possibilidade de dar vida aos lugares a partir dos usos coletivos neles partilhados e estimulados pelos mais variados e múltiplos motivos, inclusive o turístico e o do lazer espontâneo. Estar junto motivado por atividades culturais ou comerciais, pelo uso residencial ou institucional; enfim, estar junto. Creio que o modo de garantir e/ou estimular o livre encontro entre as pessoas é unir, o máximo possível, todos os motivos que atraiam as pessoas aos lugares coletivos.
A atividade turística está intimamente relacionada à questão urbana, seja potencializando lugares economicamente ativos, seja revalorizando locais economicamente abandonados. É uma atividade que se relaciona aos novos e/ou existentes equipamentos coletivos, à promoção comercial, à valorização simbólica, à geração de receitas e empregos, enfim, à geração de diversidade funcional no espaço.

O atual processo de globalização reforça e valoriza a diversificação, mas também homogeneíza valores. A atratividade turística deveria se dar, a princípio, pelas singularidades que criam identidades próprias aos lugares. Como entender a produção do espaço turístico que transforma os lugares em lugar-comum homogêneo, com as mesmas franquias multinacionais –por exemplo- espalhadas por todos os lugares? Qual a atratividade de se ir a Salvador e comer num fast food tipo Bob’s ou McDonald’s?
A produção da cidade é hoje regida por parâmetros de venda e consumo (e a atração turística os reforçam), traduzindo-se no que se denomina city-marketing.
Um dos grandes paradoxos do turismo é que ele pode levar à destruição dos próprios atrativos exercidos pelos territórios. Esse risco vem sendo reforçado, pois as sociedades contemporâneas têm se caracterizado por sociedades de consumo, regidas pelos preceitos do mercado, do lucro. Criam-se, assim, locais que não se constituem como territórios devidamente apropriados, não se constituem como “lugares”. Criam-se locais artificiais, cuja infraestrutura pode ser muito boa, mas que são locais indiferentes à região; turismo sem território.
A discussão sobre o lugar turístico não é muito diferente do que hoje acontece com a produção e apropriação de qualquer lugar. Lucrecia Ferrara chama de turismo dos deslocamentos virtuais a forma como os visitantes tendem a se relacionar com o espaço: de modo efêmero e superficial, atentando-se a recortes imagéticos que pouco ou nada traduzem do lugar em si. Efeito perverso da contemporaneidade, as formas de apropriação dos cidadãos com seus espaços cotidianos estão sendo marcadas, cada vez mais, pela rapidez, insegurança e superficialidade. Estamos perdendo nossa possibilidade de apropriação espacial marcada por relações interpessoais intensas e pela afetividade. A crescente mobilidade dos indivíduos no espaço e o esgarçamento da coesão social ganhou, nas palavras de Bauman, uma conotação metafórica bem oportuna: “Os turistas se movem porque acham o mundo a seu alcance (global) irresistivelmente atraente. Os vagabundos se movem porque acham o mundo a seu alcance (local) insuportavelmente inóspito”.
As reflexões sobre a cidade cruzam-se com diversas outras questões. A constituição da identidade é uma das importantes. Mas se deve buscar a construção de saberes que não se pautem apenas pela memória urbana, ou pela identidade cidadã. Ao contrário de uma tendência pós-estruturalista que procura negar e desconstruir a noção de sujeito, devemos pautar-nos por reflexões que tenham como um de seus nortes a constituição da identidade (e sua possibilidade/necessidade dentro dos processos em curso na atualidade).
Assim sendo, mais do que nos pautarmos pela carga sígnica e simbólica (fruto da pós-modernidade) ou pela carga icônica e histórica de determinados bens culturais, devemos estimular a percepção e compreensão da necessidade deles se incorporarem aos nossos espaços de vivência. O fenômeno da comunicação d massa (a TV a partir dos anos 60; a internet a partir dos anos 90) tem assentado um modelo unificador junto aos indivíduos. A extensão dessa unicidade é perversa, pois aponta a construção de um consenso no qual “estar fora” aguça o sentimento de exclusão (reforçado por um projeto político-ideológico neoliberal do “deixa estar”, do “fazer-se cada um por si”).
A falácia tecnicista não resolve o problema, sendo necessário o resgate de uma nova ética (ou melhor, da ética em si), cabendo à cultura e à identidade uma possibilidade de reordenação do acontecer social e de resgate da sociabilidade e da urbanidade. Porém, uma lógica ordenadora contrária à dos modernistas que setorizaram nossas cidades. A arquitetura pode ter um sentido ordenador sim, mas que deve ser utilizado para estimular usos. Usos diferenciados.

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