quinta-feira, 14 de maio de 2009

Produção do espaço urbano - algumas questões. Parte II.

LUGAR, LUGAR-COMUM E NÃO-LUGAR

A cidade é uma construção material e, sobretudo, um espaço que resulta dos modos culturais dos que nela habitam e dela participam; isto a transforma num lugar apropriado afetivamente (ainda que sujeito a representações ideologicamente constituídas).
O espaço urbano reflete modos particularizados de vida social e sociabilidades (expressos, principalmente, nos espaços públicos das ruas e praças). É, também, e como reflexo, o espaço das contradições, conflitos e ambigüidades. Um tecido social em crise acirra o caos urbano (violência, pobreza, individualismo, isolamento, privatização da esfera pública). Os mecanismos para a reversão de tal situação precisam ser identificados através de condutas metodológicas que busquem flagrar potencialidades para uma requalificação dos espaços públicos enquanto espaços de sociabilidades múltiplas e que identifiquem estratégias para um planejamento urbano que, ao invés de reforçar experiências homogeneizadas (e ao mesmo tempo fragmentárias), possa reforçar a produção da cidade enquanto lugar antropológico permeado de sentido e memória.
Canal privilegiado de comunicação e interação, é através do espaço da cidade que potencialmente a consolidação e as trocas culturais se estabelecem. A maneira como a cidade é percebida, ou levada a ser percebida é transpassada por discursos ideológicos que parecem naturalizar práticas culturais hegemônicas e simplificadoras.
Hoje, vive-se uma realidade que enfraquece o uso da cidade enquanto experiência vivida, acarretando apropriações frágeis e efêmeras. Numa sociedade de consumo centrada em imagens e aparências, a vida urbana tende a ser uma experiência regida pelos mesmos propósitos, a cidade tratada como espetáculo.
Busca-se, através deste texto, enfocar o espaço urbano enquanto locus de apropriação coletiva. De que modos os usuários da cidade transformam o espaço em LUGAR de pertencimento e elos identitários? O cotidiano da cidade sobrevive aos processos de espetacularização? Qual o destino de nosso LUGAR-COMUM (em oposição ao LUGAR-NENHUM)? Como conter/suavizar os processos contemporâneos de individuação que levam ao solapamento dos vínculos sociais e transformam o espaço em um NÃO-LUGAR?
Enquanto oposições binárias, poderíamos distinguir os termos como a seguir.
LUGAR é pausa e contato. É real e singular. Gera experiência. É espaço usado e vivido. NÃO-LUGAR é movimento e indiferença. É artificial e universal. Gera virtualidade. É espaço consumido e observado. A produção do lugar se efetiva a partir dos níveis de sentido que lhe atribuímos.
Em suma, é necessário refletir sobre as condições de nossa urbanidade e nossa sociabilidade. Refletir sobre as potencialidades e dificuldades para a qualificação e vitalização dos espaços e sobre a gestão cultural do espaço da cidade (entendida pelo valor de uso dos lugares, e não pelo valor de troca onde agora a própria cidade é tomada como produto a ser consumido de maneira efêmera).
A vida pública enseja a convivência com aquele que não conheço, mas que não excluo. Em contraponto, a vida privada –como o próprio termo aponta etnologicamente- pressupõe privar, ou estar privado (e nem um nem outro pode ser uma meta satisfatória). A cidade, em seu sentido clássico, sempre apresentou uma tríplice e importante composição de espaços: o público, o econômico e o cultural; o primeiro remetendo à ágora, o segundo ao mercado e o terceiro aos adros religiosos. Três espaços coletivos que indicam não mais existir plenamente. Os motivos? Pode-se arriscar alguns: a violência urbana desvitalizando praças e calçadas; shoppings e vendas à distância a transformar radicalmente nossas vitrines de exposição de produtos. E quanto ao terceiro, serão os novos modos culturais capazes de substituir as representações coletivas de outrora?
Enfim, devemos olhar a cidade como um enigma a ser decifrado, (re)conhecer seus valores “invisíveis”, enfocar paisagens urbanas como paisagens poéticas, ou seja, resgatar as poesia do urbano independente do moderno ou do antigo, e sim pelo cotidiano que nele se dá. Flagrar a cidade invisível da memória (labiríntica, ligada ao acaso, aos surtos de recomposição do passado) que se encontra superposta à cidade da razão. Uma cidade cujas singularidades encontram-se tanto no domínio da ordem (espacial) quanto da “desordem” das lembranças, nos detalhes que escapam das transformações urbanas. Recuperar nos reflexos especulares aquilo que “ilumina” os lugares comuns, os espaços cotidianos.
A história da modernidade buscou regimentar a esfera estatal como representante única da esfera pública. Pensamentos contrários buscariam articular a todo indivíduo três atuações básicas: pública, privada e íntima. Segundo o pensador português Boaventura de Souza Santos (1996) assiste-se, hoje, a uma hiperpolitização estatal e uma despolitização da vida cotidiana.
Podemos entender como ação pública aquilo que de nós pertence ou está voltado aos demais, dependendo mais da referência espacial em que se desenvolve. A não-clareza ou não-distinção entre as diferentes esferas leva a que lidemos com o outro através de posturas e sentimentos equivocados, por exemplo: o ódio é um sentimento íntimo; nossa relação com a violência então não deve ser vivenciada como ódio ao outro e sim como reivindicação corretiva e busca de mecanismos de segurança.
Não há, portanto, como dissociar a ação sócio-espacial de noções ligadas à cidadania, à justiça social, à afirmação de sociedade civil e da ação pública, ou mesmo à ética.
Por outro lado, e em reação a uma homogeneização cultural (de base norte-americana), tem-se ensejado o fortalecimento de políticas que fortaleçam o “local globalizado” em substituição ao “global indiferenciado”. Urge que busquemos fortalecer a apropriação dos espaços públicos, vendo-os como lugares potenciais de práticas culturais e de sociabilidade. O estar junto desinteressado e as condições físicas propícias a isso norteiam a noção de apropriação dos espaços, sobretudo os públicos e coletivos. As estratégias e objetivos a se buscar devem apontar para a identificação dos principais marcos afetivos e analisar as formas de uso e apropriação de espaços coletivos potenciais às práticas culturais e à dinâmica social da cidade; flagrar o LUGAR.
Entende-se essas práticas como elementos de desenvolvimento humano amplo, ou seja: produção de identidade cultural, desenvolvimento de relações sociais inclusivas, sedimentação do direito à cultura e à cidadania; vivenciar o LUGAR-COMUM.
Desde já um alerta: o que aqui se pretende ao falar de manutenção e resgate da memória nada tem a ver com certa tendência apontada por Andreas Huyssen (2000): “restauração historicizante de velhos centros urbanos, cidades-museus”. Não é a memória enquanto produto rentável da indústria cultural que deve ser buscada, e sim as relações mais interpessoais que o passado possibilitou e a desconstrução do não-sujeito pós-moderno – e seu NÃO-LUGAR - através do resgate da identidade.

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